“O nascimento do pensamento é igual ao nascimento de uma criança: tudo começa com um ato de amor. Uma semente há de ser depositada no ventre vazio. E a semente do pensamento é o sonho. Por isso os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos.”
Rubem Alves
Lembro como se fosse hoje o último dia em que estive presencialmente no Viverzinho. Apenas eu e mais duas professoras, caso algum estudante aparecesse. Não veio ninguém.
Era março de 2020 e o começo de uma jornada que ninguém imaginaria que seria tão longa, desafiadora e para a qual nenhume de nós estava preparade.
A princípio, pensamos que seria passageiro e neste caso, não havia sentido em oferecer uma alternativa on line, afinal, educação se constrói na presença e a educação infantil então nem se fala.
Rapidamente, vimos que nossas previsões otimistas não se cumpririam e que, se quiséssemos manter o vínculo com aquelas crianças, se quiséssemos que os alicerces que sustentam a educação que acreditamos se mantivessem firmes, teríamos que construir uma relação a distância.
Mas como fazer isto? Naquele momento ninguém sabia. Nem como nem se seria possível. Como transpor a frieza e assepsia do virtual? Como abrir mão da relação com a natureza, um dos eixos condutores do trabalho na escola?
A resposta à esta pergunta era uma só: tínhamos que tentar, com as ferramentas que compõem nossa prática costumeira: escuta, afeto e troca.
No primeiro ano da pandemia, testamos e tentamos. Acertamos mais do que erramos, mas também erramos e aprendemos com nossos erros.
A equipe da educação infantil trabalhou mais junta do que nunca e graças a isso todas pudemos aprender umas com as outras. E a lição principal que entendemos é que é sim possível construir e manter vínculo a distância. Que se é o melhor que temos então faremos disto o melhor possível.
Mas este texto se propõe a falar da construção do projeto na educação infantil dentro do modelo on-line, por isso, faço aqui um recorte para apresentar o trabalho desenvolvido pelas turmas que optaram por permanecer apenas on-line no segundo ano de pandemia, enquanto algumas crianças voltaram a frequentar a escola presencialmente.
Foram formadas duas turmas on-line no começo do semestre, sob responsabilidade das duas professoras de referência que optaram por permanecer no modelo virtual: Cris Proença e Marina Pontieri (eu ).
Em nossas primeiras reuniões com a coordenação para planejamento do semestre, ouvimos que deveríamos tornar os projetos mais das crianças. Ouvi-las e usar mais e melhor suas ideias.
Além disso, sabíamos que um dos pilares fundamentais do trabalho no ambiente virtual é o intercâmbio com as famílias. Num momento em que as crianças estão quase que integralmente com suas famílias, o papel da escola passa a ser estar presente para a criança e para a família, mais do que nunca. Seja acolhendo questões psicopedagógicas, seja proporcionando atividades, assuntos e questionamentos que transbordem o momento da aula e a dureza da tela.
Até então, os projetos desenvolvidos ou tinham sido de temas propostos pelas professoras e dentro dele as atividades eram escolhidas em conjunto com as crianças ou as professoras haviam apresentado um tema que amarrasse os assuntos e desejos das crianças. Como fazer mais do que isso, sem a observação do dia a dia?
Começamos a conversar sobre a turma. As características individuais e de grupo daquelas crianças. Nossas turmas eram compostas quase que na totalidade por crianças mais velhas, de 4 e 5 anos e Cris propôs que construíssemos com elas um mapa mental. Que elas nos contassem suas vontades e gostos.
Vamos tentar? Vamos tentar. Ninguém nunca fez planejamento na pandemia antes para sabermos o caminho, então o caminho é tentar
E este movimento trouxe para a gente a dimensão exata de quanto o trabalho com projeto é multifacetado, o quando ele tem a propriedade de se transformar e se adaptar às vontades e características da turma.
Me lembro até de pensarmos, poxa, se sair um projeto parecido podemos juntar eventos e pesquisar juntas. Hahaha. Inocentes.
A começar pela execução do mapa mental as duas turmas se revelaram muito diferentes. Enquanto as crianças da turma da Cris se engajaram em responder e construir juntas as informações sobre o que gostavam, em um Jamboard com uma página por criança, as crianças da minha turma rapidamente se aborreceram com a atividade.
Desta forma, o mapa mental da Cris foi uma atividade de sala, enquanto eu acabei usando como arquivo referencial de anotações sobre as vontades das crianças. Ambos funcionaram no sentido de apoiar e direcionar o projeto.
Durante as primeiras aulas do ano, fomos trazendo atividades que as crianças pediam, diversas, e ouvindo atentamente. Conversando entre nós, e com Anna Maria, nossa coordenadora, deixamos o tempo passar para que um projeto surgisse sem interferência nossa.
Parece fácil, mas não interferir é um dos processos mais difíceis na educação infantil. E ainda, qual é a medida exata do que é apoio e do que é interferência? Não temos uma resposta.
“ experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, Ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto sua própria transformação.”
Jorge Larrosa Bondía
Assim como esperamos das crianças que realizem experiências transformadoras no decorrer de nossas práticas e para tanto que estejam abertas para serem transformadas por elas (e elas em geral estão, nesta fase), nós adultes que nos propomos a mediar o processo educativo de forma que a experiência possa ocorrer em toda sua potência precisamos nos retirar do papel de condutores destes processos.
Escuta na educação infantil tem muito a ver com estar aberto a mudar de opinião, de postura, a embarcar nas aventuras das crianças sem ideias preconcebidas.
E foi assim que a Cris acabou tocando um projeto sobre aranhas que é a fobia número um dela rs. Porque um belo dia, um estudante montou uma teia de barbante em casa e os outres se interessaram. E a partir deste assunto outras dúvidas pertinentes surgiram.
Da mesma forma, a partir de uma atividade da minha turma que basicamente consistiu em assaltar os armários de pais e mães e ficarmos inventando roupas e fantasias, as crianças apontaram que uma roupa parecia típica de um país, outra de outro e como será que as pessoas se vestiam no deserto? Resolvemos descobrir, no projeto Volta ao mundo.
E este é o momento que a gente como educadora fica atento para reconhecer: o momento em que existe uma fagulha, o momento em que reconhecemos nas crianças a voracidade pelo conhecimento.
A partir do tema do projeto definido, entra em jogo a aplicação do método científico: coube a nós trazer disparadores para que as crianças pudessem elaborar hipóteses, pesquisar sobre elas, confirmá-las ou refutá-las e a partir disso elaborar novas e melhores hipóteses.
Além disso, era importante que as crianças se mantivessem interessadas e que paralelamente trabalhassem competências importantes para a idade. Não apenas no momento da aula, mas que pudessem levar para suas rotinas.
Nesta perspectiva, ainda que os dois trabalhos tenham sido muito discutidos por nós em conjunto, cada professora tem sua forma de proceder.
Cris se preocupou em apresentar o tema aranhas sob a maior variedade de pontos de vista, respondendo os questionamentos e pedidos da turma e relacionando com as diversas competências através de um mapa conceitual de organização pessoal (lindo e maravilhoso. Cris arrasa)
No projeto Volta ao mundo, existia um quê de imprevisibilidade, pois a cada viagem rodávamos o globo para ver onde o dedo parava, para irmos da próxima vez e neste sentido, minha programação tinha menos antecedência. De posse da informação de qual seria o próximo lugar, eu tinha uma semana para puxar informações, atividades e competências a serem desenvolvidas que conversassem com as vontades das crianças.
Também preciso dizer que ajustes no caminho foram necessários. Percebi que precisaria mesclar aulas muito cheias de informação, com outras nas quais as crianças pudessem interagir mais e contar mais de suas vidas e rotinas. Assim, de vez em quando nosso projeto cedia lugar para conversar sobre a vida, para jogos de palavras, brincadeiras ou preparações de poções mágicas. Sempre relacionado ao momento de alguma criança.
Da mesma forma, Cris conta que recebeu uma mensagem de um aluno pouco tempo antes da aula dizendo que ele queria muito falar sobre o deserto. E com a aula toda preparada, lá vai a Cris pesquisar que tipo de aranha habita os desertos (e não é que a danada é bonitinha?).
De maneira geral, avaliamos que foram projetos muito ricos, com muita escuta de nossa parte e interesse das crianças.
Também pudemos contar com a ajuda e o envolvimento das nossas maravilhosas famílias para que os projetos saíssem da tela e invadissem os lares. Muitas famílias enviaram fotos das aranhas de suas casas e foram pesquisar mais sobre elas, assim como famílias do projeto Volta ao mundo contavam que se acostumaram a pesquisar mais sobre os lugares visitados com base nos relatos enviados após as aulas e que isto virou uma atividade familiar.
Para garantir o envolvimento das famílias e que esta troca fosse possível, criamos linhas de comunicação via whattsapp, mandando links, fotos, vídeos e histórias referentes aos projetos, bem como mantivemos um PADLET de registro.*
Mais do que nunca a pandemia nos mostra que escolas são pessoas. Mais do que nunca os muros da escola se dissolvem. Mais do que nunca caminhamos juntes.
E juntes somos fortes.
*Você encontra os relatos completos dos dois projetos desenvolvidos aqui: